Há muito me faltava tempo para relembrar o passado. Hoje, depois de horas perdida em meus pensamentos abri o armário de bugigangas e puxei uma caixa de papelão, dessas de mercado, fechadas com uma fita adesiva lacrada desde a minha primeira mudança.
Achei que deveria abri-la, não sem antes me perguntar a serventia daquilo.
Não lembrava exatamente o havia guardado ali. Recordava-me apenas que por ocasião da minha primeira troca de casa em 1999, juntei todas as lembranças de infância e adolescência tais como: fotos, objetos, livros e diários; e guardei tudo para que algum dia meus filhos (e eu ainda não os tinha) pudessem se interessar por aquilo. Imaginei que velhinha, abriria uma caixa corroída pelo tempo e passaria horas contando elegantemente o meu passado.
Essa tarde eu modifiquei meus próprios planos. Por uma necessidade, é bem verdade.
Sempre gostei muito de livros, mas confesso que nos últimos meses me deparei com uma fase virtual muito forte, apegada aos microblogs, páginas de relacionamentos, internet, séries, músicas, utilidades e inutilidades. Rendida pelo mundo “google it”.
Pois foi exatamente para rechear meu perfil numa dessas páginas que me deparei com um impasse: Quem sou eu? Sempre odiei essa pergunta ardilosa, mas se ela existe achei que deveria respondê-la, nem que fosse com um “sei lá”. Abri a pagina de pesquisa e digitei um quem sou eu despretensioso de qualquer resposta e a primeira sugestão que me apareceu foi: quem sou eu para o orkut.
Revelo que foi a primeira coisa que me fez rir verdadeiramente nas últimas 24 horas. Então pensei: tudo bem, a internet me traz um lazer excelente, me faz ter contato com pessoas que pensei nunca mais encontrar na vida e me encanta, particularmente, a velocidade da informação. Porém essa massificação me corrói, ou como se diz no twitter #ficoputa.
Encontrar um quem sou eu pronto para ser copiado e colado é demais para quem cresceu no meio das palavras.
E foi exatamente essa necessidade de elaborar um autêntico “quem sou eu” que me levou a abrir aquela maldita caixa.
Subi em um banquinho sem chinelos (obedecendo a recomendação de meu pai) revirei as quinquilharias e achei aquilo que ninguém mais sabia a existência.
Sacudi a poeira; não aquela densa dos filmes e sim uma nuvem fina e imperceptível que me fez espirrar 4 vezes em sequência. No caminho para sala abri a gaveta da cozinha, peguei uma faca e sozinha, num silêncio que só eu escutava, rasguei cuidadosamente a fita adesiva como se aquela caixa guardasse o melhor que eu pude ser.
Retiro algumas folhas, recortes de jornal e esboço um certo alívio ao libertar a minha velha guardiã “Peposa”, uma usinha de dedo quebrado, jogada ao próprio destino dentro daquela caixa apertada. Fiquei com pena dela, acreditem.
Ela foi um presente dos meus pais quando devia ter 10 ou 11 anos. Em um primeiro momento ela foi para mim mais do que uma simples ursinha de pelúcia. Foi uma verdadeira companhia para uma menina que tinha antipatia por dormir sozinha. Hoje reclamo diariamente o fato de minha filha mais velha ser exatamente assim.
Ela foi um presente dos meus pais quando devia ter 10 ou 11 anos. Em um primeiro momento ela foi para mim mais do que uma simples ursinha de pelúcia. Foi uma verdadeira companhia para uma menina que tinha antipatia por dormir sozinha. Hoje reclamo diariamente o fato de minha filha mais velha ser exatamente assim.
Num segundo momento, depois de casada, era um objeto de imagem e semelhança com meus pais e foi preciso maturidade para colocá-la dentro da caixa.
Continuo minha invasão ao passado e retiro os recortes de jornal do ano de 1991, em seguida um poema escrito a lápis em uma folha comum, com letras trêmulas. Nesse momento as lágrimas correram compulsivamente, incessantes e doloridas relembrando uma história (com h) que talvez eu nunca seja capaz de compreender. Quem sabe um dia escrevendo poderei me livrar desse fantasma, e as pessoas entenderão meu luto eterno.
Por um momento me arrependo de ter frustrado o destino inicial e inesperadamente fecho a caixa. Minha guardiã fica para fora. Empurro-a pra dentro com certa raiva. Encaminho-me para a cozinha, lavo o rosto ali mesmo, bebo água sem gelo (coisa que eu detesto) e sento-me imóvel, estatelada, me condenando por revirar momentos adormecidos.
Não fosse pelos diários eu não teria voltado para a frente daquela caixa. Retomo a compostura e retorno ao objetivo iniciado após o almoço, num dia chuvoso e tenso.
Um caderno repleto de citações, frases não muito extensas, entre aspas, todas copiadas a mão. Passam por Drummond, Clarice, Verissimo e desembocam em Nietzsche e Maquiavel. Perco-me nas lembranças daquelas anotações e me lembro de um dia ter pretendido fazer jornalismo.
Não restava muita coisa lá dentro e eu começava a me perguntar se o “quem sou eu” da minha página estaria pronto ao final dessa visitação.
Encontro com uma alegria quase infantil um poema com o qual ganhei um concurso promovido pelo jornal da Biblioteca do Colégio da Policia Militar do Paraná; o JOBICO. Não me recordo o ano, 88 ou 89 talvez. Nome do poema “A Busca”. Tenho em minhas mãos apenas uma cópia batida à maquina, sem data, sem autoria, sem cópia do jornal da escola. Penso como seria interessante ter preservado o original.
Algumas poucas fotografias e quatro diários. O primeiro deles datado de 1987, tem formato de diário infantil, com chave e uma bonequinha meiga na capa. Os outros três são cadernos comuns datados em ordem cronológica crescente, que por vezes falha, tendo como última data o ano de 1992.
O que se passa na seqüência foram momentos de releitura de passagens de alguns anos de minha vida, talvez os mais importantes para mim. Passagens relatadas de forma simples e clara, mas completamente verdadeiras para mim.
Minhas amizades, a coleção de papel de carta, relatos simples de uma menina comum. Briga com a melhor amiga, paixão platônica pelo vizinho mais velho. Detestava matemática e tinha paixão por história. Tudo completamente real.
Assusto-me com a maneira perdida e intensa a que me refiro ao meu irmão. Vezes pareço odiá-lo, vezes pareço amá-lo mais que tudo. Penso então que preciso, com todas as minhas forças, entender as brigas de minhas filhas de maneira mais branda, afinal, revivendo aquele momento consigo perceber em minhas próprias palavras alguém que não tinha juízo suficiente para compreender que as relações se constroem assim, com amor e frustração. E hoje sei que construí com meu irmão único nos dois sentidos da palavra, uma amizade verdadeira. E sei que isso nunca vai acabar. Sei disso porque não havia rancor nas minhas palavras, apenas momentos de ódio sem que eu tivesse usado essa palavra uma vez sequer.
Estranho o fato de ter guardado apenas um livro e sorrio com o nome sugestivo “Em Algum Lugar no Passado” do qual apenas me recordo ter um dia acreditado que deitada em minha cama, repetindo algumas palavras, seria levada ao passado, numa espécie de teletransporte. Encubro uma gargalhada que me ocorreu com a recordação. Acho que foi o motivo dele ser uma relíquia pra mim, já que não é um livro primoroso e rico. Mas com certeza com significado para ímpar e no mínimo engraçado.
Quem teve paciência de chegar até aqui deve estar curioso em saber se fui capaz de escrever poucas linhas sobre a minha pessoa.
Uma coisa é fato: Eu não mudei muito, quero dizer, minha essência não mudou (será que a de alguém muda?)
Minhas primeiras anotações:
Minha letra continua um garrancho, ora cursiva, ora de fôrma, ora desenhada, ora pior que receita de médico com pressa. Não entendo algumas palavras que escrevo, tamanho o borrão. Derrubo as palavras para a direita como se elas quisessem chegar mais rápido ao final da linha, exatamente como faço hoje.
As minhas impressões sobre o mundo e sobre a vida pareciam um “sonho lindo de viver”. Hoje, por vezes, acho o mundo tão árduo e mísero que o recolhimento é a fuga mais rápida que me resta quando não quero pensar.
Um assunto que sempre tive medo: a morte. Não da minha, como o passado confirma e o presente ratifica. Assunto recorrente em meus relatos, continuo a ter medo de encará-la e desta vez o tempo não atenuou meus temores. Quando se tem filhos (e quem os tem entende com perfeição o que digo) esse simples fato natural do ciclo humano se torna um pavor insuportável de pensar.
Medo de escuro e “gente morta”. Esboço mais um sorriso antes de derrubar as palavras para a direita (sim, fiz um manuscrito antes de me sentar ao computador). Medo de escuro já não tenho mais e “gente morta” (espíritos, imagino) não é coisa que me passe diariamente pela cabeça, se bem que não me agrada a idéia de alguém me aparecer no meio da noite sabe-se Deus vindo de onde.
A experiência do alto dos meus 14 anos, escrevendo sobre Família é algo interessante. Pelo menos para mim. Afirmo com atrevimento e pretensão (já presentes naquela época) que esse é o combustível para minha engrenagem. Minha razão de ser e de viver.
Naqueles anos idos o amor que eu transpirava por meus pais, irmão e minha avó (protagonistas do meu passado), continua sangrando em mim de maneira tão completa, tão inquestionável, tão clara que esses manuscritos só poderiam pertencer a duas pessoas nesse mundo. O eu de 1990 e o eu de 2010. Algo que impressiona.
*Adendo inútil pra quem lê e de valia para mim: esse amor perdeu personagens, mas ganhou, em contrapartida, outros que são igualitariamente importantes: Patricio, Manoela e Carolina. Preciso registrar que Guilherme, filho do meu irmão, figurinha mirrada e de uma esperteza incrível, apesar de distante, passeia em meus pensamentos sempre.
No mais eu não pretendo aqui reescrever a minha história de vida. Continuo a preferir salgado a doce, minhas coleções todas se perderam no caminho que trilhei. Meus livros simples e rotineiros (O Anãozinho de Paletó Verde, Cazuza, Milho Pra Galinha Mariquinha) me fizeram o que eu sou hoje: uma pessoa que não aceita informações prontas. A tal da “massa pensante” ao invés da “massa de manobra”. Meninas! guardem isso para todo o sempre.
Ainda curto o pudim e o empadão da minha mãe. Pudim comi recentemente, mas o empadão virou lenda.
Tinha um sonho de viajar o mundo. O mundo do tamanho que ele é falta muito, mas não posso reclamar do que a vida me proporciona.
Não gosto tanto de praia como me pareceu, se bem que acho gostava mesmo era daquela casa... (bom, fica pra uma outra vez)
A minha timidez, numa escala de 0 a 100 melhorou 95 com o avançar dos anos. Hoje, beirando os 35, acho que sou um mistério para quem me olha de fora e absolutamente clara para os “meus”.
Não pretendo mais salvar o mundo, as baleias, os pobres e nem os velhinhos indefesos, mas continuo com um olhar crítico (herdado de meu pai) para determinadas politicagens.
Sou exatamente a mesma pessoa marrenta e mal humorada de manhã. Ainda brigo na rua, no mercado, na escola, quando acho que tenho razão. Talvez ainda leve mais uns 20 anos para eu aprender que isso não me leva a nada e nos dias de hoje as pessoas perderam o poder do argumento e nunca se sabe onde uma discussão vai parar.
Odeio qualquer coisa ou qualquer um que me sufoque. Assim como no passado preciso de liberdade pra pensar. Não me mande fazer algo porque se você mandar, aí é que eu não faço! Quem está no comando sou eu e mesmo que eu faça sua vontade vou dar um jeito de dizer que ela é minha. Talvez meu maior defeito. Estar no controle.
Continuo com o coração mole e chorão. Prometo não reclamar do meu bebê chorão chamado Carolina.
Em 1991, cursando o 1º ano do ensino médio em Londrina, escrevi que faria vestibular para Direto o que de fato veio a acontecer. Decisão que não me causa arrependimentos. Estou apenas como espectadora do exercício profissional desde as primeiras semanas da gravidez de minha segunda filha, momento no qual optei em brigar por ela. Hoje ela vai muito bem, obrigada.
O Direito ainda me fascina. Entender que a verdade depende da maestria de quem narra e da percepção de quem julga ainda me dá calafrios. Médicos lidam com vidas. Operadores do Direito também.
Bom, fechei minha caixa com fita adesiva, e como de costume peguei meu diário, as minhas anotações que seriam breves e objetivas transformaram-se em uma descoberta única e prazerosa de que mudaram os rumos que a vida me impôs, mudaram os assuntos e até a maneira de olhar o mundo e as pessoas, mas o meu caráter e minha personalidade (“o quem sou eu”, se preferir) estão intactos exatamente como a 20 anos atrás, guardados para a eternidade em uma caixa de papelão jogada na lavanderia de casa.
PS. Falei que minha timidez melhorou 95. Então, em nome dos 5 que ainda me restam de muleta não aceitarei pedidos de leitura de meus manuscritos e nem pedidos de “vistas” aos objetos de minha caixa.
Até porque essa caixa pode nunca ter existido e ser apenas fruto da minha imaginação :)
Blumenau, 10 de fevereiro de 2010.